O jornal Zero Hora de ontem (5.7) publicou interessante artigo de meu colega e amigo Mário Cavalheiro Lisbôa, sustentando que "nesta vida ninguém muda". Concordando, só em parte, com ele, escrevi outro artigo, com o título de "A substância e a essência" que o mesmo jornal publica em sua edição de hoje (6.7).

Seguem ambos.

Milton Medran - Porto Alegre/RS - medran@via-rs.net


 

A CONDUTA HUMANA

Mário Cavalheiro Lisbôa

Procurador de Justiça

Nesta vida, ninguém muda. Refiro-me à substância da pessoa, ao seu caráter, ao seu conceito de moral. Para analisar citada posição, o leitor pode lembrar-se de seus familiares, seus amigos, seus colegas. Algum deles mudou com passar dos anos? Claro que não. São sempre as mesmas pessoas. Apresentam sempre as mesmas virtudes e os mesmos defeitos. São até previsíveis. Já sabemos como irão se comportar em determinadas ocasiões. Os conhecidos não surpreendem ninguém.

Somos todos reincidentes. Estamos sempre repetindo as mesmas condutas, seja para o bem ou para o mal. Cada pessoa possui uma determinada índole e haverá de conviver com ela para sempre. "Você é o que sempre foi" e "o seu futuro é o seu passado", diz a cultura popular. Daí ser uma tentativa vã querer mudar as pessoas. Este é um equívoco muito comum que, no mais das vezes, apenas causa frustrações. É certo que, com o passar do tempo, as pessoas amadurecem. Mas o amadurecimento não muda a substância do ser.

De acordo com o psiquiatra e professor John Livesley, do Canadá, os fatores genéticos e ambientais contribuem na mesma proporção (50% cada) para a formação da personalidade. A mesma conclusão chegou o psicólogo holandês Guus Van Heck, este dizendo que 50% a 60% de nosso comportamento é geneticamente determinado. Estes estudos apenas agasalham a posição acima citada.

Mas, se é assim. Se, em sua substância, nossos familiares não mudam, nossos amigos não mudam, nossos colegas não mudam, como vamos querer que os delinquentes mudem? Que alterem sua índole e passem a ser bons cidadãos? Claro que isso não acontece. E não acontece apenas aqui. Não acontece em lugar algum do mundo. Um palestrante inglês, que esteve em Porto Alegre, disse-nos que, entre os presos, os índices de reincidência naquele país eram de 63%. No Brasil, consta ser de no mínimo 70%. Por isso que os países desenvolvidos são rigorosos com seus delinquentes. Porque sabem que eles não vão mudar. Em liberdade, quase certamente irão praticar novos delitos. Daí a necessidade de que haja no Brasil profunda modificação, não apenas nas leis, mas principalmente na cultura jurídica.


 

A SUBSTÂNCIA E A ESSÊNCIA

Milton R. Medran Moreira *

            Meu dileto amigo e colega Mário Cavalheiro Lisbôa sustenta que, “nesta vida ninguém muda” (“A conduta humana” - ZH 5/6). Mas, ressalva referir-se à “substância da pessoa”. Talvez tenha razão o Mário.  Tanto quando fala “nesta vida”, quanto ao aludir à “substância”.

            Quem é pai, quem é educador, quem vislumbra nos mecanismos da justiça alguma perspectiva de recuperação ou ressocialização de um delinquente, sabe. É muito difícil lidar com certas tendências humanas. Há pessoas que parecem resistir a vida toda a qualquer tentativa de transformação comportamental ou ética. A palavra não os convence, os exemplos não os atingem e a própria punição não os intimida.

            Dizer que fatores genéticos são determinantes de suas vidas, que, ao nascerem, já se acha plasmada, em definitivo, sua personalidade e, com ela, suas tendências para o bem ou para o mal, para o amor ou o ódio, para a solidariedade ou o egoísmo, para a criminalidade ou a ordem, será aceitarmos a irreversível ditadura dos genes.

            Há, talvez, uma forma de nos rebelarmos contra esse aparente determinismo genético que faz terra arrasada a todos os esforços pedagógicos, empreendidos milenarmente pelos mecanismos da educação e da justiça, na história evolutiva e civilizatória da humanidade. A forma será, quem sabe, admitirmos que somos mais do que substância. Que por de trás dos genes, há uma essência que com eles interage e da qual a própria genética é apenas um efeito, uma substância provisória. E que também a cultura, outro fator sempre levado em conta na formação dos hábitos e comportamentos humanos, é plasmada por essa essência. As religiões a chamam de alma, as filosofias espiritualistas preferem o termo espírito, mas podemos todos nos entender se a denominarmos simplesmente consciência.

            Sob uma ou outra denominação, praticamente todos a reconhecemos como a própria essência do ser humano e como patrimônio imaterial que plasma a história da humanidade.  Já é tempo de refletirmos sobre ela dissociada e liberta dos genes e dos neurônios, para que se abram caminhos outros capazes de superar o inconciliável dualismo religião/materialismo.

            Talvez por esse caminho reconheçamos que é possível, sim, mudar. Que muito já mudamos e que, individual e coletivamente, temos imenso potencial de transformação. O que talvez seja difícil é a percepção dos efeitos práticos dessas mudanças no tempo e no espaço em que nos movimentamos enquanto substância. Talvez aí tenha o Mário um pouco de razão, ao dizer que “nesta vida, ninguém muda”. É preciso, assim mesmo, investir na mudança e crer no efeito transformador da educação, da palavra e do exemplo.

 Na infinita trajetória da consciência, o futuro tem a amplitude da essência. E, por isso, rompe e supera as barreiras da substância e os limites da existência. Viver é mais que existir.          

·         Procurador de Justiça aposentado. Diretor do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre.

 

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