BaLeLa - ARte e cULTurA Como pensar a crítica literária?

Mergulho vertical

Em livro de ensaios, Wander Melo Miranda investiga a produção literária brasileira repensando as fronteiras da literatura

 
 

Como pensar a crítica literária? E fazer crítica literária? Essas são duas questões que perpassam os ensaios reunidos em Nações literárias, de Wander Melo Miranda, professor titular de Teoria da Literatura, da Universidade Federal de Minas Gerais. Sem dúvida, ele é uma das grandes vozes do panorama da crítica literária nacional, contudo sua atuação no campo cultural não se restringe às aulas, à escrita de ensaios ou às palestras. Há mais de uma década, é diretor da editora da UFMG, que nos últimos anos publicou importantes autores e obras, consolidando-se com um catálogo de peso e garantindo a presença de uma editora universitária no mercado nacional. Trabalho intelectual e burocrático que ele soube muito bem conciliar com as atividades de pesquisa.

Nações literárias, composto por 18 textos, escritos em diferentes momentos da carreira, de 1995 a 2008, e fruto de um leque variado de interesses, é dividido em três partes, organizadas a partir de núcleos comuns que não correspondem à cronologia original da elaboração dos ensaios. Uma ruptura com a linearidade que se apresenta ao leitor desde as páginas iniciais, na nota assinada pelo autor.

Um mergulho vertical na literatura e nas artes brasileiras, guiado pela sensibilidade de leitura do autor. E aqui deve ser enfatizado um ponto central da pauta dos estudos literários hoje: a questão da pós-autonomia. Isto é, o tratamento da literatura não mais como um compartimento separado, passível de ser estudado pela perspectiva da "interdisciplinaridade". Na verdade, a literatura, mesmo tendo as suas peculiaridades e características específicas de seu discurso, faz parte e interage com um todo muito maior. Quais são as fronteiras do literário? A estudiosa argentina Josefina Ludmer também se coloca essa problemática no texto Literaturas pós-autônomas: "Muitas escrituras do presente atravessam a fronteira da literatura [...]". Seguindo essa linha, o filósofo e historiador francês Alain Badiou investe na relação entre literatura e filosofia, ao dizer que a primeira é interessante porque indica "pontos escuros, enigmas e os planta livremente no pensamento". Assim, a tática da literatura é "encontrar uma forma para o enigma que não é a solução do enigma". É, portanto, nessa abertura dos estudos literários que Wander Melo Miranda se coloca ao pensar a produção literária brasileira, e não só, do século 19 à contemporaneidade.

Problematizar esse espaço "cômodo" significa também repensar a cultura e, inclusive, a própria história, em particular, aquela literária. O primeiro ensaio que dá o título ao volume pode ser visto como um dos eixos teóricos dos demais e inicia com esses questionamentos: "[...] oferece uma pista instigante para o encaminhamento da questão da historiografia literária que se propõe aqui esboçar. As histórias da literatura são como monumentos funerários erigidos pelo acúmulo e empilhamento de figuras cuja atuação histórico-artística, em ordem evolutiva, pretende retratar a face canônica de uma nação e dar a ela um espelho onde se mirar, embevecida ou orgulhosa de seu amor-próprio e pátrio." Monumentos, acúmulo e empilhamento, a leitura desses termos leva o pensamento do leitor mais atento às famosas teses sobre a história do filósofo alemão Walter Benjamin, cuja obra é uma referência também na área literária, que se confirma nesses ensaios.

O anjo da história benjaminiano, descrito em uma das teses, que vê no lugar dos acontecimentos concatenados e encadeados uma série de ruínas, acompanha a reflexão do crítico. Acúmulo, catástrofe, ruína são, com efeito, termos explorados criticamente pelo autor. Num outro momento das teses, afirma Benjamin: "Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo". É, portanto, a partir desse olhar que desarticula para articular, que percebe e identifica a condição do desterrado para pensar a terra e a nação, que Wander Miranda descortina as bipolaridades e complementaridades da relação entre ética e estética e política e literatura. Ele faz uso das expressões "prática estética" e "prática política" ao analisar a narrativa de Graciliano Ramos em Sem pátria — título significativo no mínimo para um livro que leva o nome de nações.

Pensar a nação significa rever esse conceito hoje, que não pode mais manter as mesmas conotações do final do século 19, no período de constituição e legitimação dos estados-nação. Nação ou Nações (nação ou nações), cujas fronteiras, sejam elas territoriais, lingüísticas ou culturais, não são mais fixas na contemporaneidade. De fato, ao tratar de Cornélio Penna, A menina morta, o crítico literário com um olhar microscópico pergunta: "Por que sul-americano e não apenas brasileiro?". Questionamento que pode sugerir outro: O que significa a nação no nosso mundo contemporâneo? Como ver com os movimentos nacionalistas crescentes em algumas regiões do globo?

Retomando as problemáticas literárias em Fronteiras literárias encontram-se algumas conjecturas da produção literária contemporânea e de possíveis caminhos a serem trilhados tortuosamente. Como observa com perspicácia Wander Melo Miranda, os pequenos temas, o detalhe insignificante, os eventos imperceptíveis do cotidiano, os fragmentos, as falsificações são aspectos que caracterizam novas escritas que escapam "da uniformidade da voz única das verdades oficiais ou dos discursos utópicos de emancipação".

As cores e os tons do Brasil-Brasis mostram as suas nuances e sons em nações literárias por meio das vozes e imagens de Alencar, Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Silviano Santiago, Pedro Nava, João Gilberto Noll, Chico Buarque, Paulo Lins, Fernando Bonassi, Charles Baudelaire, Giuseppe Ungaretti, Jorge Luis Borges, Paulo Leminski, Ary Barroso, Alberto da Veiga Guinard, Jasper Johns e Rosangela Rennó. Sem contar as referências a críticos do passado e do presente conjugados com erudição e maestria pelo professor da UFMG. Paleta plural com diferentes cores que compõem e perfilam a grande Aquarela do Brasil, "a nação nossa de cada dia".

Nações literárias não é só um retrato do Brasil visto pela lente da ruína e da fantasmagoria, outra palavra-chave que percorre as páginas do volume, mas é, sobretudo, um dos resultados da trajetória de um importante intelectual que marca, definitivamente, as discussões no âmbito da crítica literária contemporânea.

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"A cultura não lida apenas com as artes e universidades, mas com todos os valores da sociedade humana, que a um governo democrático incumbe respeitar e vitalizar" - Jorge Cunha Lima
 
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