Art&MusicaLSlides® Inês - "TEXTO DE FERNANDO HENRIQUE"

      

 

Fernando Henrique Cardoso

A soma e o resto

 

OS QUE ESTÃO VIVOS E OS MORTOS


No fundo estamos condenados ao mistério, mas , pelo menos na memória dos outros, você sobrevive. 

Vivi intensamente isso com a perda da Ruth. Olhando para trás, é claro que ela estava com um problema grave de saúde. Apesar disso fizemos uma viagem longa e fascinante à China, como se o problema não existisse.

A gente sabe que um dia vai morrer e no entanto vive como se fosse eterno.


Depois da morte de Ruth e, mais recentemente, de outros amigos, eu me habituei a conversar com os que morreram. Não estou delirando. Os mortos queridos estão vivos dentro da gente. A memória que temos deles é real.


À medida que vamos ficando mais velhos, convivemos cada vez mais com a memória.  Por intermédio da Ruth, passei a lembrar mais dos outros que morreram, dos meus pais, meus avós.

Os que morreram e nos foram queridos continuam a nos influenciar..

Eu não penso na morte. Sei que ela vem. Já senti a morte de perto. Não em mim. Senti a morte de perto nos meus. E procuro conviver com ela através da memória.


Os que se foram continuam na minha memória e eu converso com eles. Minha mãe, meu pai, minha avó, minha mulher, meu irmão, meus amigos que se foram são meus referentes íntimos. 


Então, a morte existe, ela é parte da vida, é angustiante, não se sabe nunca quando ela vai ocorrer. Eu só peço que ela seja indolor. Não sei se será.
Ninguém sabe como e quando vai morrer. Pessoalmente, tenho mais medo do sofrimento que leva à morte do que da morte propriamente dita.


 
SENTIDO DA VIDA
 
Aos 80 anos creio que cada um cria o sentido de sua vida.  Cada um tem que tentar criar o seu sentido.
  Esse caminho da literatura me contagiou e me levou à política.


Passei a vida inteira tentando entender melhor a sociedade, os mecanismos que podem levar a uma sociedade mais decente, como digo hoje, não apenas mais rica, e sim mais decente.


Tem que haver, é claro, algum grau de riqueza, senão a miséria, a escassez predomina e então não   se tem nem liberdade nem igualdade. A escassez é a luta, a guerra pela sobrevivência.

 Tem que haver um certo bem-estar material. Além disso, porém, é preciso criar uma condição humana de dignidade, de decência, de aceitação e respeito pelo outro.


Tentei entender isso do ponto de vista intelectual e fazer a mesma coisa do ponto de vista político. Então acho que dei um certo sentido à minha vida. Esse sentido tem que ser dado por cada um.

Não está dado que todos tenham que ter o mesmo sentido e haverá quem nunca encontre sentido na vida e fique batendo cabeça.

"Quando se vai ficando velho e, portanto,

mais maduro, você tem que valorizar

mais a felicidade, a amizade,

essas coisas que, no começo da vida,

parecem secundárias."


Essa angústia vai ser permanente. Não tem solução. É parte da condição humana. Não sabemos de onde viemos, não sabemos para onde vamos. Tampouco sabemos porque e para que estamos aqui.

O que não podemos é deixar que essa angústia da morte e da ausência de um destino claro nos paralise.


Cada um tem que inventar sua resposta. Cada um tem que dar sentido à sua vida.  Esse sentido não está dado. E vai sofrer para encontrar.


Uma resposta está no próprio convívio com os outros. Inclusive com os mortos.

Talvez isso arrefeça um pouco a angústia. Não se vive sem amizade, sem amor, sem adversidade.


Quando se vai ficando velho e, portanto, mais maduro, você tem que valorizar mais a felicidade, a amizade, essas coisas que, no começo da vida, parecem secundárias.

Embora eu tenha sempre me definido como mais intelectual do que como político, naverdade minha vida foi muito mais dedicada ao público.  Nunca fui uma pessoa voltada em primeiro lugar para alcançar o meu bem-estar. Eu tenho bem-estar. Diria que quase sempre tive bem-estar.

Mas esse não foi o meu valor.


 Eu a tive de alguma forma, nunca me senti infeliz. Eu me dediquei muito mais a ver a situação dos outros. De uma maneira modesta, sem proclamar. Nunca andei proclamando, sou solidário, sou do bem. Mas levei a vida inteira pensando no mundo, pensando na sociedade, pensando nas pessoas,  nos outros. O sentido que dei à minha vida foi construir isso.
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Fonte: Fernando Henrique Cardoso – do texto: A soma e o resto: um olhar sobre a vida aos 80 anos

 

 

 

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